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segunda-feira, 5 de abril de 2010

O medo nas histórias infantis

Por Leila Bergmann 1, Eliete Zotti Bonfadini 2

Introdução

As crianças procuram o medo. As histórias infantis incluem sempre elementos assustadores que ensinam os pequenos a conhecer e enfrentar o medo. Curiosos e excitados, os pequenos exigem que os adultos repitam várias vezes as passagens mais amedrontadoras dos contos de fadas. A madrasta malvada da Branca de Neve é mais popular do que os bondosos anõezinhos, assim como a bruxa comedora de crianças de João e Maria ou o tenebroso Darth Vader, do contemporâneo Guerra nas Estrelas. (CORSO, 2006, p. 17).

O presente estudo originou-se de uma curiosidade nossa, ao lermos o trecho da citação acima: “as histórias infantis incluem sempre elementos assustadores”. Está claro que a afirmação é forte e genérica. Obviamente nem todas as histórias infantis apresentam tais elementos; acreditamos, porém, que sem alguma generalização torna-se difícil realizar uma análise mais ampla a respeito de qualquer assunto e, em especial, à temática do medo nas histórias infantis – objetivo principal deste trabalho.

Em linhas gerais, no presente trabalho será apresentado, inicialmente, um breve relato histórico (Contos de Fada: um pouco de história) a respeito dos Contos de Fadas e seus autores e, em seguida, uma seção (A contribuição da fantasia na formação da personalidade infantil) sobre a influência da fantasia, a qual permite à criança reconhecer a possibilidade de tranqüilizar-se e de vencer seus medos.

A seção O medo nas histórias infantis procura mostrar que há, na Literatura Infantil narrativas que liberam a criança de sua angústia e de seu medo de não se sair bem, pois muitos Contos de Fadas nos ensinam que o mais insignificante dos seres pode obter algum tipo de êxito.

Por fim, nas Considerações Finais, sem a pretensão utópica de esgotar o tema, procuramos articular as questões abordadas nas seções anteriores com as implicações sócio-culturais destas abordagens, tendo em vista o fato de que o medo é um dos sentimentos que povoam a mente das crianças e que, de uma maneira ou de outra, tem um lugar assegurado na Literatura Infantil.

Como professoras, acreditamos que as histórias dirigidas às crianças, incluindo os Contos de Fadas, podem proporcionar uma infância marcada pelo encantamento. Encantamento esse que comove e estimula os sentimentos. Concordamos, também, com a idéia de que através das histórias as crianças têm a oportunidade de ampliar, transformar e enriquecer sua própria experiência de vida, pois ouvir e ler histórias é penetrar num mundo curioso, repleto de surpresas, quase sempre muito interessante e mesmo encantador, que diverte e ensina. O contato com histórias, particularmente com os Contos de Fadas, possibilita à criança aprender brincando em um mundo de imaginação, sonhos e fantasias.

Muitas vezes nos lembramos com saudades das histórias contadas em nossa infância... Com certeza, para muitos, as narrativas dos clássicos infantis que nos provocavam medo eram as preferidas, pois esses momentos eram “mágicos”, prazerosos; enfim, inesquecíveis. A intensidade dessa interação, por perdurar até hoje - histórias-infâncias-medo –, levaram-nos a explorar mais este tema, possibilitado por inúmeros vieses e compreensões. Não pretendemos, está claro, esgotar aqui neste pequeno espaço as diferentes e variadas análises e/ou estudos sobre o assunto, mas sim provocar algum tipo de reflexão nos leitores a respeito dessa temática.

Contos de Fadas: um pouco de história

Contos de Fadas, Lendas, Fábulas, Histórias, Mitos... São temas que fascinam e estimulam a fantasia dos adultos e em especial das crianças, mexendo com a imaginação e a percepção. Mais do que isso: a fantasia ajuda a formar a personalidade dos indivíduos, através da interiorização dos valores que estão explícitos ou implícitos nas histórias infantis. Conforme Fortuna (2005, p.1), os Contos de Fadas fascinam porque são maravilhosamente transmitidos por meio da tradição oral, de forma transgeracional de uma geração à outra), em momentos mágicos de encontro das infâncias (da infância de uma criança com a infância de um adulto que foi criança). Também porque este é um dos preciosos meios que temos - e temos poucos meios, se comparados com os recursos psíquicos do adulto - quando somos crianças, para lidar com situações desagradáveis e resolver conflitos pessoais. Esta é, na verdade, uma forma de proteger as crianças, já que por seu intermédio a criança lida com seus medos e emoções. Outro aspecto relevante dos contos tradicionais é a esperança que supõem: o final feliz, a transformação, por vezes o perdão e, mais freqüentemente, a punição exemplar, sugerem justiça, insuflam esperança, fé no futuro. Mais um motivo pelo qual estas histórias são tão fascinantes é o fato de que tratam dos temas angustiantes da humanidade: a origem da vida, a morte, o abandono, a perda dos pais e também a sexualidade. Finalmente, estas histórias, desenhos e canções abordam a criação e vivência de mundos imaginários, mundos que não existem - mas, quem sabe?...

De acordo com a autora, vários são os elementos que propiciam o fascínio que os Contos de Fadas exercem sobre as crianças. Importa aqui também esclarecer de que maneira a imaginação da criança está sendo entendida aqui; a saber, como um espaço de liberdade e uma espécie de decolagem em direção ao possível, quer realizável ou não. Sensível ao novo, a imaginação4 seria também uma dimensão que possibilita à criança vislumbrar coisas novas, pressentir ou esboçar futuros possíveis. Ela tem necessidade da emoção imaginativa que vive através da brincadeira, das histórias que a cultura lhe oferece, do contato com a arte e com a natureza, e da mediação adulta: o dedo que aponta e a voz que conta ou escuta. Particularmente em relação à questão do medo, torna-se relevante lembrar aqui a importância do narrador que legitima, problematiza ou acrescenta algo à narrativa.

Machado (2002) nos lembra que os contos surgem a partir dos mitos e tradições orais, alguns datados do século II d.C. Eles sofreram e sofrem modificações em sua estrutura, não apenas por razões externas, mas também por razões internas ao próprio contador. Nas versões escritas por Perrault (apud Machado, 2002), por exemplo, são acrescentados preceitos morais, já que estes contos eram usados como recursos para reforçar boas maneiras, condutas e ações. Além disso, os contos originais foram adaptados, pois traziam enredos que chocavam e assustavam até mesmo os adultos. Inicialmente não eram destinados às crianças, eram, sim, criações populares, feitas por artistas anônimos do povo, as quais sobreviveram e se espalharam por toda a parte graças à memória e à habilidade “narrativa de gerações de contadores variados, que dedicavam parte das longas noites do tempo em que não havia eletricidade para entreter a si mesmos e aos outros contando e ouvindo história” (Machado, 2002, p. 69).

Ainda segundo a referida autora, só depois de existirem por muito tempo como histórias orais, os Contos de Fadas começaram a ser escritos. Charles Perrault recolheu Contos de Fadas e Histórias consagradas pela tradição oral e organizou em Os contos de mamãe Gansa, criando-se, assim, os primeiros textos destinados às crianças, no século XVII (1697). Ele, no entanto, não criou nenhuma obra, apenas adaptou estes contos populares para uma linguagem mais apropriada à corte.

Da mesma forma, no século XIX, os Irmãos Grimm, nascidos na Alemanha, também fizeram uso do mesmo método para elaborar seus contos. Recolheram Contos de Fadas tradicionais junto às pessoas mais velhas que sabiam de cor essas narrativas e escreveram esses relatos, fazendo muito sucesso. Apenas com a produção do dinamarquês Hans Christian Andersen, no século XIX, surgiram as criações literárias destinadas especificamente às crianças. Andersen, como seus precursores, inicialmente utilizou a literatura popular, dos contos escritos e dos relatos orais para, em seguida, dedicar-se à criação própria, centrada principalmente no cotidiano.

Os Contos de Fadas5, ao longo do tempo e de modo geral, não modificaram sua estrutura básica: o eterno conflito entre o bem e o mal. Eles também possuem uma estrutura simples (situação inicial – conflito – processo de solução – sucesso final) e por resolverem situações problemáticas através da fantasia, tornam-se fáceis de ser compreendidos para a criança, atendendo as características do seu pensamento mágico (Aguiar, 2001). Isso acontece porque esses contos partem das emoções dos seres humanos que são transformados em personagens imaginários de um mundo de fantasia - somos nós e o mundo interior. Talvez por esse motivo, independente da idade, sejamos tocados de modo tão profundo por esses contos.

A contribuição da fantasia na formação da personalidade infantil

Nesta seção faremos algumas considerações a respeito da importância da fantasia. De acordo com Corso (2006), ela se caracteriza por ser um mecanismo criado pelo homem para superar as dificuldades da vida. Através da Literatura Infantil, a fantasia influencia o imaginário da criança e mantém uma certa cumplicidade em relação às “viagens” do mundo imaginário.

Todorov (apud Corso, 2006), ao estudar o gênero do fantástico, situa-o entre o maravilhoso e o estranho. É próprio do maravilhoso, tal como definido por Todorov, ser um tipo de escrita na qual o elemento do sobrenatural aparece de forma natural, ou seja, segundo Todorov (apud Corso, 2006, p.40), “por mais malucos e oníricos que sejam os acontecimentos, não haverá estranhamento, pois está tácito de que estamos em outro registro, que tudo é totalmente fictício, que não se explica de nenhuma maneira”. Ainda segundo o referido autor, o fantástico se instaura quando há uma indecisão acerca da natureza de um acontecimento.

Para que o fantástico se sustente, portanto, é preciso que haja hesitação do leitor. (“Será que isso é verdade?/ É possível?”). Se decidirmos que se trata de um acontecimento sobrenatural, regido por leis estranhas às do mundo que conhecemos, então entramos no âmbito do maravilhoso. Se, ao contrário, conseguirmos dar uma explicação possível no mundo real, o acontecimento passa ao campo do simplesmente estranho. Além disso, para Todorov, o leitor deve ler o texto de uma determinada maneira, que não pode ser nem alegórica, nem poética. Ao fazer a diferenciação entre a tríade fantástico, estranho e maravilhoso na literatura, o conceito de Todorov sobre o fantástico foi e ainda é fortemente criticado, na medida em que se percebe que as fronteiras que separam os três gêneros são muito tênues, e o fantástico pode mesmo ser considerado um “gênero sempre evanescente”, ou seja, que desaparece, é fugaz e efêmero.

Algumas histórias tratam de temas que fazem parte da tradição de muitos povos e apresentam soluções para problemas universais, pois funcionam como válvula de escape e permitem que a criança vivencie seus problemas psicológicos de modo simbólico, saindo mais feliz dessa experiência. A obra de Bettelheim (2001) foi “a pedra fundamental” da produção psicanalítica sobre os Contos de Fadas, ensinando-nos os mecanismos de sua eficácia na vida das crianças – eficácia observada a partir do diálogo da criança com aquelas histórias que lhe agradam. De acordo com Corso (2006), retomando aspecto já destacado por Betttelheim, essas histórias oferecem soluções para possíveis conflitos e transmitem a mensagem de que a luta contra as dificuldades e os medos é inevitável, mas a vitória é possível.

Segundo Bettelheim (2001), os Contos de Fadas abordam – tendo como base o elemento fantástico - problemas interiores dos seres humanos e apresentam soluções válidas para qualquer sociedade, contribuindo para formar a personalidade e atuando significativamente no desenvolvimento emocional infantil. A criança aumenta seu repertório de conhecimentos sobre o mundo e transfere para os personagens seus principais dramas.

Para Corso (2006), o simbólico apresentado nas histórias infantis possui importância fundamental, pois expressa anseios humanos tais como: encontro e desencontro, angústia, medo, tristeza, alegria, amor e dor. O sentido da vida começa a ser traçado quando ainda a única linguagem entendida pela criança, é a do afeto. Deste modo, crianças sensibilizadas desde cedo para o universo da linguagem e para a utilização da capacidade simbólica tornam-se pessoas com um sentido de vida verdadeiro, capazes de lançar para o mundo um olhar de doação, generosidade e transformação.

O medo nas histórias infantis

Muitos medos a gente tem e outros a gente não tem. Os medos são como olhos de gato brilhando no escuro. (Roseana Murray)

O medo da criança pode ainda indicar aos pais o que aflige emocionalmente as crianças. Durante um curso sobre a formação emocional da criança, na Sociedade Brasileira de Psicanálise (Rio de Janeiro), a psicanalista Celmy Quilelli (2002) explicou que uma criança que tem medo de escuro, por exemplo, pode estar tentando mostrar como é difícil ficar longe de sua mãe ao dormir e, conseqüentemente, perto de suas fantasias. Ela citou o caso de uma criança que, na hora de dormir, pediu à tia para falar. A tia perguntou: "Por quê? Está tão escuro!"; e a criança respondeu: "É que quando você fala, a luz se acende!” (Quilelli, 2002, p.1).

Para Machado (2002), os contos são um patrimônio da humanidade. Eles foram escritos em outra época, e a criança consegue compreender isso. Porém, muitos dos clássicos infantis foram se modificando através dos tempos, as histórias mudaram de acordo com a cultura e a época, havendo muita diferença dos Contos de Fadas originais para os atuais. A tendência de retirar o mal, o medo e o castigo de certas narrativas é forte nos dias de hoje. As mudanças de enredo apaziguam as emoções que precisam ser vividas. Não é saudável, segundo a autora, evitar que as crianças enfrentem os conflitos. Nesse sentido, Corso (2006, p 17) assinala que as crianças continuam interessadas no mistério; se ele se empobrece, elas o reinventam. Da mesma forma, são fascinadas por tudo o que desperte nelas a vasta gama de sentimentos de medo. O medo é uma das sementes privilegiadas da fantasia e da invenção; grande parte dele provém das mesmas fontes do mistério e do sagrado. O medo pode ser provocado pela percepção de nossa insignificância diante do Universo, da fugacidade da vida, das vastas zonas sombrias do desconhecido. É um sentimento vital que nos protege dos riscos da morte. Em função dele, desenvolvemos também o sentido da curiosidade e a disposição à coragem, que superam a mera função de defesa da sobrevivência, pois possibilitam a expansão das pulsões de vida. [grifo nosso].

Os autores sublinham justamente a importância que o medo apresenta para o imaginário infantil. Desejo e medo são elementos fundamentais para a evolução dos seres humanos, uma vez que temos medo do que desejamos e desejamos o que nos faz medo. Na evolução humana, esses temores devem ser enfrentados/desviados/superados, sob a pena de surgirem patologias, pois os medos estão presentes no cotidiano de todos: medo do escuro, de dentista, da escola, da perda dos pais e tantos outros que acabam por conviver com a criança. Na infância, medos comuns são abordados em obras literárias, tais como o medo do abandono, de coisas perigosas, de mar, de lobo, de bruxa, de tempestade, de escuro, de dragão, de monstro, de fantasma e tantos outros. Essas histórias específicas pretendem ajudar as crianças a enfrentarem esses temores infantis e aprenderem a lidar com eles, identificando-se com personagens e experimentando outras existências. (Mainardes, 2004).

As obras de literatura infantil contemporânea que abordam o medo, publicadas no Brasil, podem ser consideradas significativas. De modo geral, as histórias tratam o medo como algo natural, perfeitamente superável e que pode ser enfrentado. Os livros infantis sobre o tema sugerem que, ao expressarmos nossos medos, pela fala, pela leitura e outras formas de expressão (choro, por exemplo) eles podem ser aliviados ou resolvidos.

Não é o objetivo aqui neste trabalho analisar os diversos livros de Literatura Infantil que tratam deste tema. Assim, apenas para ilustrar, citamos somente algumas obras de autores brasileiros, começando por Ruth Rocha que, na coleção de 1986, "Quem tem medo” , apresenta em “deliciosos” versos, vários tipos de medo. A autora descreve, por exemplo, em Quem tem medo de cachorro, que o mais valente dos cães, o Dóberman, aparentemente forte e corajoso, teme o menor cãozinho, o Lulu da Pomerânia, somente porque ele tem nariz frio. Numa ciranda de medos, no livro Quem tem medo de monstro?, cada um dos personagens tem seus medos. Em Quem tem medo de quê?, Ruth Rocha apresenta - em versos que supõem um diálogo - os medos que cada um pode ter: de trovão, de avião, de escuro, de vampiro, e conclui que ter medo não é vergonha.

Por volta dessa mesma época, em Alguns medos e seus segredos, publicado em 1984, o livro infantil de Ana Maria Machado mostra que, com vários personagens (uma mãe, um bicho-papão, monstros) todo mundo teme alguma coisa, e até mesmo os adultos confessam ter medo. A conhecida obra Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque de Holanda apresenta a menina amarelada de medo, pois tinha muitos medos: tinha medo do lobo, mas quando o encontrou perdeu o medo. Ela conseguiu transformar em companheiro cada medo que tinha: “o raio virou orrái, barata é tabará, a bruxa virou xabru e diabo bodiá” (Holanda, 2003, p. 27). E ainda ficou com outros companheiros: o "Gãodra, a Jacoru, o Barão-Tu, o Pão Bichôpa e todos os trosmons" (Idem, p. 28). Estas obras citadas mostram com humor e leveza que o medo é algo normal. Ele faz parte do repertório das emoções humanas e é, portanto, natural e necessário, diretamente relacionado com o instinto de conservação (Mainardes, 2004).

No que se refere aos Contos de Fadas tradicionais, Corso (2006) afirma que eles podem falar de muito perto dos sentimentos mais secretos, desejos escondidos, guardados no interior da criança. Desse modo, o público ouvinte infantil experimenta o medo e por vezes antecipa o alívio que irá sentir no final, porque sabe que tudo acaba bem. Para os autores, esta é uma forma de lidar com sentimentos, sejam eles bons ou ruins. Ao escutar histórias que provocam o medo, a criança estabelece um vínculo entre ela e o personagem, concebendo estratégias para se posicionar no mundo e compreender o que o rodeia, fornecendo significados, estruturando e dando forma às figuras e aos conflitos do seu dia-a-dia. Histórias de crianças que saem ou são expulsas de suas casas, ou que perdem o rumo de volta depois de um passeio mais ousado e se deparam com perigos inimagináveis, funcionam como antecipações que permitem à criança dominar o medo do “mundo cruel” que, mais dia, menos dia, terá de enfrentar. Complementando essa idéia, Fortuna (2004, p. 190) afirma que a criança, ao dar um nome e uma etiqueta aos próprios medos, de modo a exprimi-los de viva voz, a poder declará-los abertamente e a ter certeza de que os outros poderão aceitá-los e compreendê-los, ela realiza uma sofisticada operação mental em que fala consigo mesma e com os outros de uma sensação que, de outro modo, seria inexprimível. Ao mesmo tempo, circunscreve o âmbito e os limites daquilo que assusta, prepara o processo de redução e, finalmente, de extinção dos medos, capacitando-se, com o tempo, a superá-los.

De acordo com Brazelton (2002), todas as crianças passam por períodos de medo. Os medos são normais e ajudam a criança a resolver problemas ligados ao seu desenvolvimento, além de chamarem a atenção dos pais para a luta na qual a criança está empenhada. Os medos geram o apoio dos pais numa época em que as crianças precisam dele e também fazem surgir a energia necessária ao reajustamento. Concordamos com Brazelton quando afirma que a criança, ao lidar com seus medos, aprende a controlar-se e a administrar mais uma arrancada no seu aprendizado e no seu desenvolvimento emocional.

Considerações Finais

Através dos Contos de Fadas, a criança vê representados no texto, simbolicamente, conflitos que enfrenta no dia a dia e encontra soluções para eles, pois as histórias em geral trazem um final feliz. Uma vez que os Contos de Fadas e as histórias infantis apresentam tamanha importância, cabe aqui sublinhar a relevância do papel exercido pela Escola e pelos professores – assim como pelos pais e por outros adultos que convivem com a criança – ao contar histórias. Fortuna (2005, p.2) aponta que é fundamental: conversar sobre o que as crianças estão pensando a respeito do conteúdo das histórias, seu tema, a época e as condições em que a trama se passou. Mas, cuidado: não cabe ao adulto 'moralizar' as histórias, com frases do tipo "viu o que acontece quando não se obedece à mamãe?" O importante é que as hipóteses da criança possam ser externadas através da elaboração secundária, e que o adulto possa acolher o conteúdo de seu universo psíquico, em lugar de tentar dirigi-lo. Isto implica, da parte do adulto, muita generosidade, altivez e capacidade de brincar com a criança...

Como existem diversas interpretações e análises para os Contos de Fadas, estas considerações não deixam que se esgotem aqui todas as possibilidades de entendimento que ainda podem surgir.

Por acreditar no poder da fantasia, nós nos lançamos à tarefa de refletir sobre o medo nos Contos de Fadas, e o resultado deste trabalho possibilita que novas compreensões sejam feitas acerca deste tema. Na primeira parte, trouxemos referências sobre as narrativas populares, que foram as matrizes dos contos infantis modernos, versões posteriores ao século XVIII, que na verdade nem eram destinadas às crianças, serviam apenas para ajudar os habitantes de aldeias camponesas a atravessar as longas noites de inverno, pois retratavam um mundo de brutalidade. Com a segunda parte, buscamos compreender, através de diferentes autores, a contribuição da fantasia na formação da personalidade infantil, uma vez que o simbólico possui importância fundamental, pois expressa os anseios humanos. Por fim, apresentamos o capítulo sobre o medo nos Contos de Fadas e nas histórias infantis que incluem elementos assustadores, os quais procuram ensinar às crianças a conhecer e enfrentar o medo e seus conflitos mais íntimos. Held (1980, p. 13) enfatiza que a criança, para se desenvolver de maneira equilibrada, harmoniosa, tem necessidade do sonho, do imaginário e que, quando a imaginação humana não é alimentada de maneira válida, ela se subverte e procura formas de substituição deploráveis, aviltantes e degradantes.

Entre tantas heranças simbólicas que passam de pais para filhos, certamente é de inestimável valor a importância dada à ficção no contexto de uma família, pois não existe infância sem ficção. Histórias não garantem a felicidade nem o sucesso na vida, mas ajudam. Afinal, certa dose de otimismo é possível, pois, embora a ficção não tenha o poder de salvar o mundo, ela, pelo menos, o enriquece. Afinal, uma vida feliz se faz de histórias: as que vivemos, as que contamos e as que nos contam.


NOTAS


1Graduada em Letras, Mestre e Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), atualmente é bolsista de PDJ (Pós-Doutorado Júnior em Educação) do CNPq, desenvolvendo, na UFRGS Projeto de Pesquisa intitulado “Representações dos Professores e Escola no Orkut”. - Lattes


2Licenciada em Pedagogia e Especialista em Educação Infantil e 1o ano do Ensino Fundamental pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.


3O presente artigo, com algumas modificações, originou-se do TCC - Trabalho de Conclusão do Curso de Especialização em Educação Infantil e 1o ano do Ensino Fundamental, no PPGEDU (Programa de Pós-Graduação em Educação), realizado na FACED (Faculdade de Educação) – UFRGS (Universidade Federal do RS), redigido pela aluna Eliete Zotti, sob a orientação da Professora Dra. Leila Mury Bergmann, em 2006.


4O conceito de imaginação da criança é trabalhado com mais detalhe em Girardello, G. Televisão e imaginação infantil: histórias da costa da lagoa. Tese de doutorado, ECA-USP, 1998, conforme consta nas referências bibliográficas.


5De acordo com Corso (2006), Contos de Fadas não precisam ter fadas, mas devem conter algum elemento extraordinário, surpreendente, encantador, maravilhoso.



REFERÊNCIAS

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BETTELHEIM, B. 2001. A psicanálise dos Contos de Fadas. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 660 p.

BRAZELTON, T. 2002. Momentos decisivos do desenvolvimento infantil. São Paulo, Martins Fontes, 541 p.

BUARQUE, C. 2003. Chapeuzinho Amarelo. Rio de Janeiro, José Olímpio, 29 p.

CORSO, D. e M. 2006. Fadas no Divã : Psicanálise nas Histórias Infantis. Porto Alegre: Artmed, 236 p.

FORTUNA, T. R. 2005. O fascínio das canções, histórias e desenhos infantis. Criar: Revista de educação infantil, São Paulo, ano I, n. 3, p. 20-21, mai/jun.

____. 2004. Brincar, viver e aprender: educação e ludicidade no hospital. Ciências e Letras-Revista da Faculdade Porto-Alegrense de Educação, Ciências e Letras. Porto Alegre, n. 35, Jan/Jun, p. 185-201.

GIRARDELLO, G. 1998. Televisão e imaginação Infantil: histórias da costa da lagoa. São Paulo, SP. Tese de Doutorado, ECA-USP, 349 p.

HELD, J. 1980. O imaginário no poder. São Paul, Summus, 237 p.

MACHADO, A. M. 2002. Como e porque ler os clássicos universais desde cedo. Rio de Janeiro, Objetiva, 146 p.

MAINARDES, J. 2004. O medo no livro infantil. In: M. B. da SILVA (Org.) Medos, medinhos, medonhos. Ijuí, Unijuí: v. 1, p. 43-72. 120 p.

MURRAY, Roseana. Fonte: http://www.graudez.com.br/litinf/trabalhos/terror.htm. Acesso em: 05/06/2007. QUILELLI, C. 2002. Para que serve sentir medo? Fonte: O Globo, Jornal da Família. 26 de setembro de 2002. Acesso em 30/10/2006, disponível em: http://www.bernerartes.com.br/ideiasedicas/dicas/medo.htm

Fonte: www.entrelinhas.unisinos.br

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